terça-feira, 9 de agosto de 2011

MEMÓRIAS DUM PORTUGAL RESPEITADO


Corria o ano da graça de 1962. A Embaixada de Portugal em Washington
recebe pela mala diplomática um cheque de 3 milhões de dólares (em
termos actuais algo parecido com € 50 milhões) com instruções para o
encaminhar ao State Department para pagamento da primeira tranche do
empréstimo feito pelos EUA a Portugal, ao abrigo do Plano Marshall.

O embaixador incumbiu-me – ao tempo era eu primeiro secretário da
Embaixada – dessa missão.

Aberto o expediente, estabeleci contacto telefónico com a desk
portuguesa, pedi para ser recebido e, solicitado, disse ao que ia. O
colega americano ficou algo perturbado e, contra o costume, pediu
tempo para responder. Recebeu-me nessa tarde, no final do expediente.
Disse-me que certamente havia um mal entendido da parte do governo
português. Nada havia ficado estabelecido quanto ao pagamento do
empréstimo e não seria aquele o momento adequado para criar
precedentes ou estabelecer doutrina na matéria. Aconselhou a devolver
o cheque a Lisboa, sugerindo que o mesmo fosse depositado numa conta a
abrir para o efeito num Banco português, até que algo fosse decidido
sobre o destino a dar a tal dinheiro. De qualquer maneira, o dinheiro
ficaria em Portugal. Não estava previsto o seu regresso aos EUA.

Transmiti imediatamente esta posição a Lisboa, pensando que a notícia
seria bem recebida, sobretudo numa altura em que o Tesouro Português
estava a braços com os custos da guerra em África. Pensei mal. A
resposta veio imediata e chispava lume. Não posso garantir, a esta
distância, a exactidão dos termos mas era algo do tipo: "Pague já e
exija recibo". Voltei à desk e comuniquei a posição de Lisboa.

Lançada estava a confusão no Foggy Bottom: - Não havia precedentes,
nunca ninguém tinha pago empréstimos do Plano Marshall; muitos
consideravam que empréstimo, no caso, era mera descrição; nem o State
Department, nem qualquer outro órgão federal, estava autorizado a
receber verbas provenientes de amortizações deste tipo. O colega
americano ainda balbuciou uma sugestão de alteração da posição de
Lisboa mas fiz-lhe ver que não era alternativa a considerar. A
decisão do governo português era irrevogável.

Reuniram-se então os cérebros da task force que estabelecia as
práticas a seguir em casos sem precedentes e concluíram que o
Secretário de Estado - ao tempo Dean Rusk - teria que pedir
autorização ao Congresso para receber o pagamento português. E assim
foi feito. Quando o pedido chegou ao Congresso atingiu implicitamente
as mesas dos correspondentes dos meios de comunicação e fez manchete
nos principais jornais. "Portugal, o país mais pequeno da Europa, faz
questão de pagar o empréstimo do Plano Marshall"; "Salazar não quer
ficar a dever ao tio Sam" e outros títulos do mesmo teor anunciavam
aos leitores americanos que na Europa havia um país – Portugal – que
respeitava os seus compromissos.
Anos mais tarde conheci o Dr. Aureliano Felismino, Director-Geral
"perpétuo" da Contabilidade Pública durante o salazarismo (e autor de
umas famosas circulares conhecidas, ao tempo, por "Ordenações
Felismínicas" as quais produziam mais efeito do que os decretos do
governo). Aproveitei para lhe perguntar por que razão fizemos tanta
questão de pagar o empréstimo que mais ninguém pagou. Respondeu-me
empertigado: - "Um país pequeno só tem uma maneira de se fazer
respeitar – é nada dever a quem quer que seja".

Lembrei-me desta gente e destas máximas quando, há dias, vi na
televisão o nosso Presidente da República a ser enxovalhado, pública e
grosseiramente, pelo seu congénere checo a propósito de dívidas
acumuladas.

Eu ainda me lembro de tais coisas, mas a grande maioria dos
Portugueses, de hoje, nem esse consolo tem.

Estoril, 18 de Abril de 2010

LUIS SOARES DE OLIVEIRA

2 comentários:

  1. Ainda bem que o senhor teve a coragem de publicar esse caracter recto do então Estado Novo, embora que esta notícia já é do conhecimento público desde há muito tempo. É sempre bom repetir uma verdade porque a memória humana é muito superficial.Hoje em dia o nosso Estado e muitas das suas instituições carecem da ética do Estado Novo, apesar de alguns erros também, pois não pode haver Estados perfeitos.

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  2. CARO SENHOR

    Há verdade que são repetidas há milénios e os homens continuam a fazer-se surdos.
    Penso até que o homem entrou numa regressão de valores.

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