O fascismo islâmico por quem o viu chegar
Boualem Sansal é argelino, foi alto funcionário até se tornar crítico do regime militar, mas continua a viver na pequena cidade de Boumerdès, próximo de Argel, a caminho do país berbere. Aos 66 anos, ele bebe ainda na criança que foi na casa de Argel a cem metros da casa do prémio Nobel Albert Camus, e escreve em francês. Sansal é filho das Luzes, a religião sendo assunto de cada um, e só para os que a querem. É adversário - um inimigo, até, pois diz-se "islamistófobo" - daqueles que lhe falam com o punhal na mão. A revista literária francesa Lire - que lhe considerou o romance 2084 como o melhor livro do ano -, fez-lhe na mais recente edição uma entrevista notável. Nunca se ouve falar assim deste tão sensível assunto que, se não nos entrou ainda em casa, estamos certos da terrível ameaça de se aproximar da nossa porta.
Como George Orwell, em 1984, que não nomeia o inimigo (nem o fascismo, nem o comunismo) para poder ir ao osso da crítica ao totalitarismo, Boualem Sansal, em 2084, fala do Abistan, império criado pelo profeta Abi, delegado do deus único Yölah. Mas é bem do mundo islâmico regido como querem os radicais do salafismo, isto é, o retornar às fontes do islão de Maomé, lidas sem ter em conta que já se passaram 1400 anos. O Estado Islâmico vamos todos conhecendo, gente que só pensa destruir o outro.
Não é novidade para o argelino Sansal. Ele viu chegar os islamistas ao seu país, na década de 80 - com a América a aplaudi-los, porque eles enfraqueciam o poder da FLN, que ainda tinha, embora tensas, relações com a França (e, como sempre, os americanos a aproveitar para afastar as antigas potências coloniais, apesar de aliadas). Os idiotas úteis em França, também se deliciaram com as vitórias eleitorais dos radicais islâmicos. A História só não se adiantou 20 anos, com os desastres das primaveras árabes, porque os militares argelinos e a sociedade civil, sobretudo mulheres, não aceitaram ir para a degola.
Diz Sansal, à Lire: "Quando os islamistas chegaram à Argélia nós estávamos dispostos a aceitá-los (...), a ver neles cidadãos como os outros." Mas os islamistas não entendiam assim. "Eles diziam: nós falamos em nome de Deus e Deus quer tudo." E então, aquilo que Boualem Sansal e os outros intelectuais (Tahar Djaout, assassinado, Said Mekbel, assassinado...), os cabelos ao vento das argelinas e a alegria dos cantores de raï (Matoub Lounes, assassinado...) pensavam ser só uma novidade religiosa, era a morte. "A fé em si mesma, eu não sabia nem sei como criticar, se você diz que tem frio, que lhe posso dizer?" Mas se do domínio íntimo e pessoal se passa para o regulamento estrito e total do dia a dia, o assunto passava a ser outro. Os argelinos tiveram a sorte de ter conhecido a dimensão totalitária do islamismo, antes de este se ter tornado a força poderosa e cega dos dias de hoje.
Boualem Sansal, como é notório no seu 2084, é pessimista. O califato otomano, aquele que dominou o Próximo Oriente até ao princípio do século XX, já era. Ele ainda oferecia alternativas aos povos que submetia. Os cultos dos outros, cristãos ou judeus, restritos, os impostos especiais, os muitos cargos oficiais proibidos para os não muçulmanos - mas uma certa aceitação, se houvesse submissão. "Essa conceção do outro, hoje já não é possível", diz Sansal. Hoje, é como explica o Estado Islâmico: o outro é cadáver, logo que se possa.
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