Se não há nada a fazer, mata-me!
Laurinda Alves, in “Observador”
O debate sobre a eutanásia
promete ser aceso, mas não pode passar ao lado de uma realidade ainda mais
urgente e fracturante: se todos temos cuidados ao nascer, também temos que ter
cuidados ao morrer
cuidados paliativos.
Primeiro, alguns factos
incontornáveis e indesmentíveis: há muitos doentes crónicos e incuráveis, em
fase avançada da doença, que são maltratados pelo sistema nacional de saúde.
Uns porque sofrem em casa, sem assistência, outros porque não têm dinheiro para
medicamentos e tratamentos, outros ainda porque desesperam em salas de espera e
enfermarias dos hospitais por terem sido dados como ‘casos perdidos’. Pessoas
em quem ninguém investe.
Muitos sofrem sozinhos, outros
acompanhados por familiares e amigos tantas vezes impotentes perante o seu
sofrimento. É difícil estar à cabeceira de quem sofre. É terrível não ter o
poder de curar. E deve ser brutal saber que os profissionais de saúde
desistiram de nós. A frase “não há nada a fazer” é assassina. Quem a ouve morre
logo ali. Devia ser proibida com urgência. E devia haver multas pesadas,
pesadíssimas, para quem se atrevesse a proferi-la em contexto clínico. Dizer a
um doente e à sua família que não há nada a fazer, é matar toda e qualquer
esperança. Não é preciso ser especialista em coisa nenhuma para saber que há
sempre muito a fazer por quem está vivo!
A finalidade da Medicina não é
apenas curar doentes e doenças. Tão pouco se destina a cuidar especialmente de
doenças agudas. A Medicina também serve para prevenir e controlar sintomas, em
especial as dores dos doentes crónicos, progressivos e incuráveis. Existem
tratamentos apropriados para este tipo de doentes, que sofrem de mil maneiras,
sejam elas físicas, morais ou emocionais. É difícil aliviar muitos sofrimentos
a muitos doentes, mas não é impossível minimizar as suas dores. Os médicos
sabem isso. E os responsáveis pelo Sistema Nacional de Saúde também. Mas deviam
saber mais: não existem para fazer apenas o que é fácil e tangível. Só quem
passa pela experiência da dor grave e aguda, da doença crónica, progressiva e
incurável, sabe o que sentem os que experimentam esta realidade. E sabem,
inclusivamente, que muitos doentes se sentem responsáveis, quase como que
culpados pelo que lhes está a acontecer. Culpados por não se curarem numa
cultura contemporânea de medicina triunfalista, essencialmente apostada na
cura. Culpados por serem ‘maus doentes’, por não terem saúde, em sistemas
estrategicamente orientados para abordagens curativas.
Neste enquadramento de
sofrimentos em cúmulo, de dores em excesso, parece a muitos que a única saída é
a eutanásia ou o suicídio assistido. Percebo que pareça e respeito quem assim
pensa, mas gostava de acrescentar ao debate nacional sobre a eutanásia a minha
perspectiva, partilhando aqui a minha experiência de 3 anos à cabeceira de
doentes terminais, numa unidade de Cuidados Paliativos, mais um par de anos
vividos à cabeceira de três doentes adolescentes que me eram muito queridos.
Dois deles morreram, mas uma sobreviveu. Foram anos duros, muito duros, mas
ensinaram-me muito. E fizeram de mim uma paliativista radical. Explico porquê.
Em três anos de voluntariado de
cabeceira com toda a espécie de doentes, de todas as idades, estive muito
próxima de pessoas mais e menos desesperadas. Conheci jovens revoltados que
entraram na unidade a pedir a eutanásia mas desistiram quando começaram a
sentir os benefícios dos cuidados paliativos; estive de mãos dadas com mães
suspensas da última respiração dos seus filhos; abracei raparigas novas que
morreram antes de chegar a casar; partilhei silêncios demorados com mulheres
que se despediam dos maridos e dos filhos pequenos; segurei no colo essas
mesmas crianças que diariamente visitavam a mãe sem compreenderem bem o que as
esperava; li livros em voz alta para avós de muitos netos; conversei longamente
com engenheiros e professoras universitárias, músicos e matemáticos, filósofos
e artistas que morreram cedo demais. Com uns aprendi o valor da aceitação da
morte e a pacificação em vida, com outros aprendi o respeito pelas suas zangas
e revoltas. Com todos percebi a extensão do sofrimento terminal e a importância
de terem ou não terem cuidados paliativos. E é aqui que tudo muda. E é este o
debate essencial que devemos cultivar e alimentar antes de avançarmos para
votações e novas legislações sobre o mítico ‘direito a morrer com dignidade’.
Felizmente os paliativistas
cuidam do direito a viver com dignidade até ao fim. Sabem que uma equipa
pluridisciplinar associada a um cocktail de químicos sabiamente doseado,
minimiza os sofrimentos físicos e atenua os sofrimentos morais e emocionais.
Até eu sei isso, e nunca estudei Medicina. Sei porque vi, porque conheci
dezenas de pessoas que pensaram que a única saída que tinham era a morte
assistida, a eutanásia, e quando começaram a beneficiar de cuidados paliativos
abandonaram a ideia. Naturalmente, sem pressões, note-se. E viveram com
dignidade até ao fim, sem dores insuportáveis, sem sentirem necessidade de
pedir a alguém para os matar.
Não posso nem quero citar nomes e
muito menos contar as histórias de cada um dos doentes que entraram no hospital
(ou chamaram os médicos a casa) a pedir a eutanásia. Uns gritavam, outros
suplicavam, outros impunham a sua derradeira vontade num silêncio devastador,
mas todos queriam acima de tudo ver-se livres do sofrimento. Não queriam viver
porque não conseguiam sofrer mais. As famílias sentiam o mesmo, e a morte
assistida parecia-lhes a única saída. Não era, felizmente. Graças aos cuidados
paliativos, muitos deles tiveram oportunidade de voltar a viajar, de realizar
sonhos, de voltar a casa, de viver sem dores e de recuperar a dignidade tantas
vezes perdida quando nos reduzem à expressão mínima. Quando alguém deixa de ter
nome e passa a ser apenas mais um doente, não dói a penas o corpo. Também dói a
alma.
Vivemos num país onde os cuidados
específicos ao nascer estão assegurados para todos, independentemente da sua
classe social ou geografia de origem, mas não temos o mesmo privilégio ao
morrer. Porquê? Porque é que antes de legalizar a eutanásia, não asseguramos
esses mesmos cuidados? Porque é que não criamos alternativas à morte assistida
minimizando ou até eliminando o sofrimento físico? Se sabemos que isso é
possível e se faz em cada vez mais unidades hospitalares, serviços ambulatórios
e equipas que vão ao domicílio dos doentes, porque não começar a discussão
política por aqui? Porque não exigir primeiro que todos passemos a ter direito
a cuidados paliativos que, ainda por cima, não se destinam apenas a doentes
terminais, mas abrangem todos os doentes crónicos, com doença progressiva e
incurável?!
Os cuidados paliativos também são
preventivos. Previnem sintomas e sofrimentos. Fazem com que as dores não
cheguem a ser insuportáveis. E com que as pessoas não queiram desistir de
viver. Tal como as doses de antibiótico têm que ser avaliadas caso a caso,
também a casuística se aplica nos cuidados paliativos. Não há receitas padrão.
Cada pessoa é uma pessoa. Os cuidados paliativos são mundialmente reconhecidos
como uma prática médica de excelência e revelam sempre uma forma de medicina
humanizada. E todos sabemos como uma medicina des-humanizada pode levar a
pedidos dramáticos e definitivos para morrer, de forma a acabar com o
sofrimento…
Fazer a diferença à cabeceira de
um doente não passa por dar mais mimos ou ter mais cuidados afectivos. Também
passa por isso, certamente, mas não se tratam doentes graves só com mimos.
Desenganem-se os que acham que os paliativistas são médicos mais queridos e
dedicados aos seus doentes porque apostam mais na ternura e proximidade do que
na ciência, pois não é possível tratar derrames, vómitos, dispneias, convulsões
e outros sintomas que tais com mimos, a dar a mão ou a fazer festinhas na
testa. Os cuidados paliativos são uma especialidade clínica avançada, da linha
da frente, que exige equipas multidisciplinares com capacidade para fazerem uma
intervenção na dor e no sofrimento dos doentes.
Não abandonar um doente que não
se pode curar é vital. Sei de um cirurgião português, contemporâneo, que
durante anos a fio operou a desoras, quase clandestinamente, doentes que tinham
sido dados por perdidos. Esperava pelas madrugadas ou contava com as horas
tardias em que os blocos operatórios estavam livres e com todas as condições de
assepcia asseguradas, para operar homens e mulheres com mais de 80 anos que
estavam desfigurados por terem um cancro na zona da cabeça e pescoço. Eram
doentes de quem os próprios familiares desistiam ou fugiam por não saberem como
lidar com a fealdade, com os cheiros e toda a escatologia própria desta doença
demolidora. Este médico tinha uma equipa que colaborava com ele e, juntos,
fizeram centenas de cirurgias a ‘velhos’ que só esperavam a morte (e pediam a
morte!). Alguns destes doentes viveram ainda mais de uma década e eu própria li
as cartas que escreveram a agradecer terem sido operados. E também conheci
filhos destes ‘velhos’ que foram ter com o médico a dizer que voltaram a
conseguir estar com os seus pais.
Podem dizer que o exemplo deste
médico não tem nada a ver com paliativos e realmente não tem, mas tem a ver com
a eutanásia na medida em que revela a humanidade dos médicos que sabem que há
sempre alguma coisa a fazer por quem está vivo. Não se trata de encarniçamento
médico, nem de obstinação terapêutica, note-se, pois nunca se tratou de obrigar
os doentes a fazer mais e mais tratamentos dolorosos, mas de minimizar
sofrimentos e devolver dignidade. Nisso, este médico agiu como agem os que
mesmo sabendo que nada podem fazer para curar, podem tentar tudo para dar
qualidade de vida até ao último dia.
A discussão sobre a eutanásia
promete ser acesa e cheia de controvérsia, mas gostava que não passasse ao lado
de uma realidade ainda mais urgente e fracturante na nossa sociedade: se todos
temos cuidados específicos ao nascer, também todos temos que ter cuidados
específicos ao morrer! Os cuidados palitaivos não podem ser só para uma elite
ou um conjunto de eleitos. Têm que ser para todos. Só quando tivermos esta
realidade assegurada teremos verdadeira liberdade de escolha e aí sim, será
mais legítimo falar de eutanásia e suicídio assistido. Antes disso,
perdoem-me os que pensam diferente, mas a minha convicção profunda (e faz de
mim uma paliativista radical) é que a maioria das pessoas que pede a eutanásia,
não a pediria se tivesse a certeza de que deixaria de sofrer. Se tivesse
garantias de que poderia libertar-se do sofrimento, sem ter que acabar com a
vida.
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